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NOTAS DE VIAGEM desenhando 
Fernando Augusto

Desenhar paisagem é inventar paisagens, mas para fazer isso preciso de paisagens verdadeiras 

Descobri a floresta Amazônica em várias viagens que fiz à Manaus. Na primeira delas, em 2004, além de conhecer os arredores de Manaus, viajei de barco, durante três dias, até Macapá. O impacto foi tão grande que prometi retornar, com o propósito de entrar mais na floresta, de avançar mais naquela primeira impressão face à Amazônia:  a impressão de defrontar-me com algo transbordante, paradisíaco, que me lembrava a origem do mundo. 

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Em janeiro de 2012 surgiu a oportunidade. A Marinha Brasileira aprovou o meu projeto para viajar em um dos seus navios, dentro do programa denominado “Navios da Esperança”, navios estes, que percorrem todos os rios amazônicos fazendo contato com os ribeirinhos e prestando serviços médicos. Durante 15 dias naveguei o Rio Madeira, de Manaus a Porto Velho no Navio Carlos Chagas, acompanhando o trabalho de atendimento médico e dentários que este programa presta à população ribeirinha. Na ocasião descrevi que meu objetivo era: desenhar e fotografar a floresta Amazônia, exercitando uma prática muito presente na formação de nossa cultura: a do artista viajante. 


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No navio tudo era novo para mim, assim como era para a tripulação, um artista a bordo. O trabalho do médico, do enfermeiro, do dentista era compreensível, mas como explicar o papel do artista ali? A tripulação perguntava sobre meu objetivo, para que eu desenhava? Diziam admirar a minha habilidade e paciência. E me indagavam curiosos como era desenhar? Eu também me fazia essa pergunta: como desenhar? O que desenha?   E, talvez por esta razão é que desenho todos os dias:  objetos, pessoas, árvores, chão, céu.  Encontro no desenho um elemento que anima a vida e uma maneira de pensar as coisas. Para desenhar eu estava ali. O desenho me levara até aquele lugar. E com o desenho eu me relacionava com eles. Passava horas sentado à proa do navio, olhando os reflexos da luz na água. Como desenhar aquela água que passava rápida, num piscar de olhos? O exercício de desenhar lentamente essas coisas, de observá-las,  me colocava  em frente ao fenômeno do instante vivido e me levava  a pensar o desenho como uma experiência, mais do que uma representação.


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Acordo cedo, vou para bombordo. Ainda está escuro e faz frio. Sozinho, olho a paisagem que se delineia em meio a neblina (a lente da câmera fica embaçada). É uma paisagem de sonhos. Difusa. As formas são apenas sugeridas e de passagem. Não penso em nada, todavia gostaria de pensar. Gostaria de falar da intensidade deste instante, para que ele durasse, para que ele não morresse, para que eu não o esquecesse. O sol começa a iluminar por trás da floresta, desenhando uma silhueta escura que se espelha na água. O céu adquire cores e, o que era escuridão vai se tornando forma. Vejo o primeiro azul do dia.  Tento guardar essa imagem, mas ela desaparece, tão logo chega a existir. O aparecimento tem a mesma dimensão do desaparecimento. Então, desenho, fotografo, crio imagens que se ligam umas às outras e me dizem algo do existir. Aprendo que, guardar uma imagem é inventá-la.


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Nas várias comunidades onde descemos, as pessoas aceitam posar para minhas lentes e para sessões de desenhos. São momentos de concentração e também de conversas sobre a vida na floresta.  Elas se divertem com a situação e sorriem ao se verem retratados.  Em Mirari, D. Gracinha, viúva, fala do marido que foi seringueiro; em Bom Retiro, seu Raimundo conta que teve de construir quatro vezes sua casa, mudando cada vez para um ponto mais alto em função dos deslocamentos e dos alagamentos provocados pelo Rio Madeira; em São Carlos converso toda a tarde com a família de um rapaz chamado Josimar. Fotografo e desenho membros da família dele. Ele gosta de jogar futebol, mas conta que tem muita dor de coluna. Eu conto que também sofro com minha coluna e que, resolvo isso com uma série de exercícios de fisioterapia que faço diariamente. Ele fica curioso. Temos tempo, eu proponho passar para ele a minha série de exercícios, ele aceita, então passamos boa parte da tarde fazendo exercícios fisioterapêuticos de coluna no alpendre da casa. Chega um vizinho dele e entra na roda. No final combino com ele de enviar-lhes as fotos que tirei deles, mas ninguém sabe o endereço certo. Depois de um tempo, uma senhora nos apresenta uma conta d’água mimeografada com as informações corretas. Eles me presenteiam com uma bonita graviola, castanha-do-pará e carambola. Despedimo-nos com sentimentos de amizade.  


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Vem-me à mente que observar a paisagem é observar algo além de mim, é sair de mim para ver algo maior e mais forte do que eu, e que esta é uma experiência válida: ver fora de mim. O desenho aqui é a maneira que disponho para realizar isso. Desenhando a paisagem, evito “falar-me”, como escreve o poeta João Cabral de Mello Neto, passo a falar das coisas, dos objetos, mas ao final, eu me pergunto, na seleção dessas coisas que olho e faço, não haverá uma fala de mim? 

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Antes de iniciar a viagem eu me perguntava o que iria desenhar e como iria trabalhar a paisagem (pois até então eu não desenhava nem pintava paisagens). Desenhar qualquer coisa passa por muitas escolhas: dimensões, ideia de um efeito, seleção de formas, combinações, materiais, tato, texturas, etc. Então comecei a me preparar desenhando árvores nos parques que visitava na cidade de Vitória-ES e, principalmente recortes da Mata Atlântica no Mosteiro zen de Ibiraçu-ES, mas por mais que exercitasse, eu sabia que o desenho se constrói errando. A mão precisa de pontos de vista e nunca dá ao olho o que ele espera.  Há uma distância entre o que se vê, o que se espera e o que se consegue fazer. O olhar precisa sair do lugar da espera para chegar aonde o desenho está. Há sempre uma diferença entre o que vejo, o que quero exprimir e o que consigo colocar no papel. Como desenhar? Só posso responder desenhando.  

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Ao embarcar de volta para casa, olho da janela do avião a paisagem amazônica lá embaixo, com um misto de alegria e saudade. O rio Solimões brilha com a luz do sol e se bifurca como os dedos de uma grande mão. É uma visão extraordinariamente bela! Observo até onde a vista pode alcançar e me pergunto, onde estive ali? Sigo os rios até eles se perderem em meio aos diferentes verdes da floresta. Parece-me que nunca estive ali, parece-me que os vejo pela primeira vez e que a floresta continua desconhecida e, me convida a retornar. 

 

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