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A (RE) SIGNIFICAÇÃO POÉTICA DA PAISAGEM POR FERNANDO AUGUSTO

 

A volta à pintura nos anos de 1980, depois de quase duas décadas de recesso, e a diversificação cada vez maior das praxes e linguagens ocorreram em paralelo ao aumento das tecnologias digitais, o que, curiosamente, parece ter contribuído para redobrar o fascínio dos artistas pela natureza. O acesso às novas tecnologias digitais, facultou a qualquer indivíduo produzir instantaneamente imagens, recorrendo a câmeras fotográficas e de vídeo, celulares, tablets, computadores, satélites, tomógrafos, microscópios... Tal imagética desvelaria locais inteiramente inacessíveis e desconhecidos, tanto da superfície da terra, quanto da natureza geofísica e humana. Mesmo que grande parte das imagens produzidas com tais recursos não seja gerada com finalidade artística, mas científica, isso proporcionou à humanidade o acesso a novos conhecimentos, visões, experiências e sensibilidades, que acabariam por ter desdobramento e repercussão também nos modos de compreender e produzir arte. As imagens capturadas por parte desses novos instrumentos tecnológicos confirmaram a ideia de que vivemos em um mundo incontestavelmente maior e mais complexo do que aquele que puderam imaginar nossos antepassados, mas também são reveladoras de que as imagens técnicas e as imagens artísticas possuem naturezas e tempos diferentes. O tempo das imagens técnicas é linear, sequencial e contínuo; o tempo da arte é circular, descontínuo, diegético (movido pela imaginação). 

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Graças às ferramentas tecnológicas tornou-se possível atestar a fragilidade e a finitude dos recursos naturais existentes no nosso planeta, o que, consequentemente, contribuiu para despertar a preocupação e a consciência ecológica e preservacionista, e também trouxe contribuições à arte. O acesso dos artistas a essas imagens, contribuiu para ampliar os modos de ver e de compreender o mundo, e repercutiu na diversificação dos processos e das temáticas artísticas, potencializando, inclusive, o interesse pela paisagem, como observa Coquelin (2007:9): “A preocupação ecológica, com efeito, vem se enxertar no interesse pela paisagem, e ´meio ambiente` se torna uma palavra-chave”. E para Debray (1992), a perda da paisagem fez com que a arte a descobrisse.

 Muitos artistas contemporâneos, seduzidos pela diversidade e eficácia de determinadas ferramentas digitais, passaram a produzir e recodificar imagens, gerando um legado de propostas inusitadas, rapidamente absorvido pelo mercado, ávido por novidades. Mas  como logo perceberam a rapidez com que as novas mídias digitais se tornam obsoletas, muitos desses mesmos artistas nunca deixaram de investir, paralelamente, na execução de desenhos, pinturas, livros, performances, instalações, recorrendo a uma gama cada vez mais diversificada de suportes, processos e linguagens.

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O processo criativo do artista multimídia Fernando Augusto, insere-se perfeitamente nesse modus operandi, em cujas obras a natureza sobrevive, se transforma e se ressignifica continuamente.   Atua como o viandante solitário, deslocando-se fisicamente por diferentes localidades do país e do exterior, à procura de paisagens naturais ou urbanas, registrando in loco e em tempo real essa experiência visual e corporal com sua câmera fotográfica, além de elaborar esboços rápidos e anotações com sua mão ágil e experiente.  As deambulações do artista pelo mundo são feitas a pé, de bicicleta, ônibus, automóvel, trem, em pequenas e grandes embarcações. Foi justamente a bordo de um navio da Marinha brasileira, que teve acesso pela primeira vez à floresta amazônica, realizando ali uma verdadeira performance, que lhe possibilitou experimentar uma multiplicidade de sensações e experiências cinestésicas, significações essas que, consciente ou inconscientemente, o artista deixa transparecer nos trabalhos que produzirá depois.

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Em depoimento à curadora, o artista afirmou que o contato com a floresta foi ao mesmo tempo avassalador e impactante, gerando um misto de êxtase e de curiosidade que o impulsionou a adentrar, sozinho e desavisadamente, a floresta, para observar, vivenciar e capturar aspectos da natureza que tinha diante dos olhos, empunhando a câmera fotográfica.  Penetrar no interior da floresta foi uma experiência ímpar para os sentidos e para a imaginação. Se a vegetação intrincada restringia a noção de distância ou de horizonte, a variedade de formas, tonalidades e texturas, imprimia avidez à visão e era um convite ao toque; o silêncio absoluto da floresta era rompido intermitentemente pelo som farfalhante das folhas agitadas pelo vento ou pelo gorjeio das aves, ativando a audição; os cheiros que exalavam da mata inebriavam o olfato. A visão ora era direcionada para o alto, orientada pela verticalidade dos troncos das gigantescas árvores, ora para baixo, detendo-se na massa vegetal compacta, que se levanta do chão e tenta sobreviver, mesmo que pisoteada e ofuscada por espécies bem mais corpulentas e altaneiras, que lhe roubam a luz solar. Essa polifonia de visões e sensações fez com que Fernando Augusto se sentisse um ser ínfimo perdido na imensidão, sem encontrar ali as usuais referências que as paisagens urbanas nos oferecem. Entendeu que não deveria avançar mais naquele universo complexo e desconhecido, em meio a um emaranhado de elementos vegetais que, embora diversos, lhe pareciam ser sempre iguais, nem arriscar seguir por caminhos que se bifurcavam, continuamente, como raízes, desorientando-o e fazendo-o perder a noção precisa de lugar.

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O artista transitou, também, por povoados instalados às margens dos rios amazônicos, e por mercados urbanos da região, voltando seu olhar sensível para a paisagem social: registrou o aqui e agora da lida diária da população ribeirinha, que depende da floresta e dos rios da região para sobreviver: coletores e vendedores de frutas, legumes e raízes comestíveis ou medicinais; pescadores comercializando seu único ganha pão, o pescado; até o processamento e transformação desses produtos naturais em alimentos típicos da região. Realizou in loco os primeiros esboços dessa experiência visual e sensível, diante da observação atenta e curiosa desses mesmos protagonistas. Numa espécie de troca ou relação recíproca “dom” e “contradom” (emprestando os termos de Marcel Mauss) o artista presenteou os indivíduos por ele retratados com as respectivas fotografias, os quais estampavam nas expressões faciais e corporais a surpresa e a satisfação de se verem representados nessas imagens. Registrou, ainda, o deslocamento de equipes médicas da Marinha brasileira descendo do navio e seguindo a pé por terra para cuidar da saúde dos ribeirinhos e dos povos originários. 

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De volta ao ateliê e com base nesses registros primários, o laboratório criativo, a mão treinada e o pensamento aguçado de Fernando Augusto são acionados e se mantêm em perfeita conexão durante o processo de transformação, desconstrução, invenção e reestruturação desses gestos e formas iniciais. Tem origem, assim, uma interminável e potente gama de imagens corporificadas em desenhos, pinturas e livros de artista, sobre papel ou tela de pequenos ou grandes formatos. Fixados nas paredes ou estirados no chão, nesses suportes vão se desvelando fragmentos do visível, que apontam para a ideia de lugar sem precisá-lo ou representá-lo. Essas expressões visuais colocam-se numa instância fronteiriça entre o visível e o invisível, a objetividade e a subjetividade, o que permite entendê-las como “paisagens incertas”, paisagens imaginárias” ou “paisagens reinventadas” pela mão e a intelecção do artista. 

Vale salientar, entretanto, que grande parte dos trabalhos apresentados nesta exposição, são resultantes, também, de transfigurações ou recodificações de aspectos da paisagem natural ou urbana de Vitória e de outras localidades do Espírito Santo. Reafirmam, portanto, a necessidade de o artista manter-se em contato direto com o fluxo temporal da natureza, capturando recortes do mundo visível, para a partir deles criar uma ideia particular de paisagem que não pretende ser o simulacro do real, no sentido de que não mantém relação exata com os aspectos do mundo que a inspiraram ou desencadearam o processo criativo. A práxis do artista, mais do que representar o mundo analógico, tem o propósito de desestabilizar e problematizar o olhar, retirando o interlocutor do conforto da obviedade, impondo-lhe desafios e dúvidas.

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A exposição apresenta ao público local uma parcela resultante da intensa pesquisa que o artista vem desenvolvendo nos últimos anos, cuja sequência sugere uma articulação cinemática de aspectos da natureza física e humana.  Integrada por desenhos e fotografias, neles desvelam - se pouco a pouco  fragmentos de árvores majestosas; detalhes ou recortes da vegetação rasteira, que sobrevive à sombra das espécies maiores; a singeleza das formas das folhas ou a sua harmoniosa alternância; a fluidez e a elegância do movimento de um ramo, ou, ainda, o contorcionismo de galhos retorcidos e suplicantes de algumas espécies, emergindo da massa vegetal compacta para encenar uma espécie de dança ou ritual. As paisagens assim geradas, ora com pequenos toques e tracejados, ora com gestos mais amplos ou mesmo impulsivos, são recriações livres de diferentes aspectos ou recortes da natureza. Se o artista apresenta na mostra alguns trabalhos elaborados em suportes de papel de pequenas dimensões, a maioria deles não esconde a preferência do autor pelos grandes suportes, dada a necessidade de expandir e deixar fluir livremente o gesto. Em ambos os casos e indiferentemente de trabalhar sobre suportes verticais ou horizontais, essas obras revelam a segurança, a harmonia e o equilíbrio de uma estruturação compositiva, resultante da perseverança, da experiência e da maturidade obtida com muitos anos de trabalho e de reflexão.

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Assim, à medida que o espectador se detém a observar e a dialogar com essas obras, a percepção torna-se tátil, condição necessária para penetrar, tocar e desvelar os elementos poéticos e poiéticos, ou seja, o que não pertence à ordem do visível, mas ao invisível, à subjetividade e ao imaginário.  Nas paisagens construídas por Fernando Augusto, em especial as de grandes dimensões, é possível desvendar uma diversidade de imagens e signos ou formas que habitam um espaço que nos parece incomensurável ou que se expande para além dos suportes. A preferência do artista por executar os desenhos de paisagens em papeis de grandes dimensões, talvez possa ser entendida como uma espécie de nostalgia ecológica, sentimento de perda que afeta cada vez mais a humanidade, como observa Debray (1992:279): “A nostalgia ecológica habita tanto nossos olhos como nossas cabeças (...) (pois), com a supressão das distâncias, se perde tanto o sentimento de extensão territorial, quanto o sentido vivido da realidade, da irredutível exterioridade” 

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Baiano de nascimento e formado pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, celeiro de grandes desenhistas e pintores, Fernando Augusto aprofundou e completou os estudos artísticos e a reflexão teórica realizando mestrado e doutorado em diferentes universidades do Brasil e do exterior, onde também ministrou laboratórios e cursos de criação artística, visitou instituições culturais e desenvolveu projetos coletivos com artistas locais e internacionais. Depois de trabalhar e ensinar durante longo período no Paraná, há quase vinte anos transferiu-se para Vitória, onde vive, atua como professor de Desenho da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e se refugia no grandioso ateliê instalado por ele em um antigo edifício no centro desta capital. É aí que o artista medita e com contumaz disciplina elabora exercícios criativos, que antecedem a execução de desenhos, pinturas e livros que vão se somar ao numeroso e diversificado conjunto de obras, integrantes de um reconhecido projeto poético iniciado há mais de quatro décadas, mas que mantém viva a força do desejo, a vitalidade do gesto e a marca potente de sua linguagem, atributos que perpassam, qualificam e redimensionam a coerente trajetória de Fernando Augusto. 

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                                                                                                          Almerinda Lopes

Referências:

COQUELIN, Anne. A Invenção da paisagem. Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo: Martins Fontes, 2007 (Coleção Todas as Artes).

DEBRAY, Régis.Vie et mort de l´ image. Paris: Gallimard, 1992 (Colection Folio Essais).

DIDI-HUBERMAN, G. O que vemos, o que nos olha. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 1998. (Coleção Trans).

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